“Toda árvore ganha beleza quando tocada pelo sol”
(Rûmî)
Por: Faustino Teixeira
ciencia.religiao@acessa.com
Resumo
Na rica tradição mística do islã, Rûmî tem despontado como uma de suas figuras mais luminosas. Como místico, revelou com grande intensidade poética os temas do amor e da unidade do ser humano com o mistério sempre maior de Deus. O objetivo deste artigo é situá-lo na tradição do sufismo e apresentar, de forma sintética, alguns traços de sua reflexão mística: a paixão pela unidade, o trajeto para a unidade, a evidência de Deus e a religião do amor.
1. Introdução
O grande interesse suscitado pelo diálogo inter-religioso nos tempos atuais tem favorecido o processo de aproximação teórico e existencial de tradições religiosas distintas e de suas experiências místicas. Impõe-se com cada vez maior clareza a necessidade deste contato mais estreito, desta abertura à alteridade, como requisitos essenciais para uma justa avaliação das outras tradições religiosas. Verifica-se, igualmente, que um dos campos mais ricos e promissores do diálogo ocorre no âmbito da experiência mística, onde, em um nível mais profundo, é celebrada a dinâmica de enriquecimento recíproco e de cooperação fecunda, indicando a riqueza de um encontro para além das diferenças.
O aprofundamento das grandes correntes místicas presentes no interior do Islamismo tem sido um dos campos importantes de pesquisa na área do diálogo inter-religioso e da mística comparada, favorecendo pistas inusitadas para uma compreensão mais significativa da dinâmica relacional que envolve as tradições religiosas e, de modo particular, o Cristianismo e o Islamismo. Este ensaio visa situar, de forma sintética, a reflexão de um dos mais importantes e significativos nomes da experiência mística do Islã, Maulâna Djalâl od-Dîn Rûmî, nascido em setembro de 1207 em Balkh, Khorassan (região oriental do Irã), no atual Afeganistão. Na rica linhagem da tradição poética persa, Rûmî traduziu como poucos a riqueza infinita da experiência do amor e da busca do mistério que envolve e banha a dinâmica do humano. Foi, também, um dos primeiros mestres espirituais que manifestaram inusitada abertura inter-religiosa, reconhecendo e acolhendo a dinâmica revelacional presente nas diversas tradições religiosas. Na visão de uma autora que consagrou sua vida a estudar e a traduzir a extensa obra de Rûmî para o francês, Eva de Vitray-Meyerovitch, a mensagem desse místico traduz um radical universalismo: “uma mensagem de amor que retoma os valores mais essenciais do Cristianismo e do Islã, sem deles nada negar, acrescentando-lhes uma dimensão integralmente fraterna e ecumênica” 1.
2. A marca do Sufismo
O Sufismo é o nome mais recorrente para designar a experiência mística do Islã, traduzindo uma “dimensão interior” muitas vezes desconhecida ou desapercebida da tradição islâmica.
O termo Sufismo, tradução de tasawwuf, deriva-se da raíz suf, que em árabe significa lã. De fato, na experiência primordial do sufismo, os primeiros ascetas revestiam-se com o hábito de lã, de modo semelhante aos eremitas cristãos, em sinal de penitência e destacamento do mundo2. A idéia que predomina é a da “pureza”(safa), sendo o sufi aquele “puro de coração” em razão da presença envolvente do Bem Amado. Na busca de uma definição mais sintética, G.C. Anawati indicou que a mística sufi constitui um “método sistemático de união íntima, experimental, com Deus”3. Não há, porém, uma definição que esgote a complexidade do fenômeno. Rûmî ilustrou de forma admirável tal complexidade através da parábola do elefante, descrita no terceiro livro do Masnavi: “Alguns hindus estavam exibindo um elefante num quarto escuro, e muita gente se reuniu para vê-lo. Mas como o quarto estava escuro demais para que eles pudessem ver o elefante, todos procuravam senti-lo com as mãos, para ter uma idéia de como ele era. Um apalpou sua tromba e declarou que o animal parecia um cano d´água; outro apalpou sua orelha, e disse que devia ser um leque enorme; outro sua perna, e pensou que fosse uma coluna; outro apalpou seu dorso e declarou que o animal devia ser como um grande trono. De acordo com a parte que apalpava, cada um deu uma descrição diferente do animal. Um, por assim dizer, chamou-o de Dal e outro de Alif”4.
Como indicou Rûmî, a compreensão do Sufismo exige uma capacidade particular de apreensão da realidade que escapa ao olhar sensorial comum. Assim como a palma da mão, na parábola descrita, não consegue captar a totalidade do elefante, da mesma forma o olho da “percepção sensorial” é incapaz de alcançar a complexidade do Real. Ele está preso aos limites da “espuma”. Há necessidade de um salto adiante no sentido de poder perceber, para além da espuma que se mostra, a dinâmica do Mar que ela escamoteia: “O olho do Mar é uma coisa, a espuma é uma outra; deixe a espuma e olhe com o olho do Mar” (MIII, 1270).
O Sufismo remonta às origens do Islã e durante todo o seu desenvolvimento esteve radicalmente ligado à tradição islâmica. Em nenhum momento afirmou-se como ruptura com a fé corânica, evoluindo sempre na linha de sua interiorização e aprofundamento. Isto não significa a ausência de outras influências judaico-cristãs que marcavam o meio onde o Islamismo veio se firmar, ou de outras tradições religiosas que o Islã, em seu processo de expansão, encontrou pelo caminho. Os autores falam, sobretudo, do influxo cristão, neoplatônico, gnóstico e budista5. Mas, de fato, a mística sufi guarda uma autenticidade original, um carácter autóctone, que se traduz pelo traço corânico e árabe. O misticismo islâmico procede, como bem sublinhou Massignon, da contínua recitação, meditação e prática do Corão6.
Nos três primeiros séculos do Islã, que se iniciam a partir da Hégira (ano 622), a experiência mística sufi será caracterizada pela doutrina ascética, como a renúncia do mundo (zuhd), passando para a afirmação do tema do amor gratuito a Deus (hubb), até chegar ao amadurecimento espiritual com a ênfase no tema do conhecimento de Deus (ma´rifa). Deste primeiro período podem ser mencionados alguns nomes importantes, como Hasan al Basri (643-728), Rabi´a al-Adawiyya (+ 801), Dhu´n-Nun (+ 859), Abu Yazid Bistami (+ 874), Abu-l-Qasim al-Junayd (+ 911) e Abu Mansur Ibn Husayn al-Hallaj (857-922). Nos séculos IV e V da Hégira, que correspondem aos séculos X e XI d.C., ocorrerá uma mudança importante na
história do Sufismo, depois das tensões com a ortodoxia vigente no período anterior, que resultaram no martírio de al-Hallaj. No novo momento vai haver um importante processo de justificação da existência do Sufismo no contexto da sociedade islâmica, representado sobretudo pela presença de Abu Hamid al-Ghazzali (+ 1111). Trata-se do período de organização e consolidação do Sufismo. Entre os séculos XII e XIV d.C., o movimento conhecerá a irradiação de obras fundamentais nos campos da filosofia, literatura e poesia. É nesse contexto que vai ganhar vida a riqueza da poesia mística persa, da qual o grande expoente será Djalâl-od-Din Rûmî (1207-1273)7.
Apesar de sua profunda ligação corânica, os místicos sufis encontraram em sua trajetória uma viva oposição da ortodoxia islâmica, que resistiu ao singular sentido alegórico atribuído pelos sufis aos ritos e cerimônias tradicionais, bem como à sua peculiar interpretação do Corão. A tensão entre esoterismo e exoterismo não é exclusiva da tradição sufi, mas comum às diversas tradições religiosas. Há, sempre, a presença de dificuldades, tensões e mesmo conflitos abertos entre os guardiães da religião oficial, que se pretendem portadores da exclusiva gramática das normas, dogmas e práticas consideradas legítimas, e aqueles que buscam a dinâmica de uma religião interior, que não se detém diante das diferenças, na busca do mistério sempre maior de Deus8. Esta é uma estranha aporia presente na trajetória histórica do Sufismo: aqueles que mais amam atraem para si o rancor e o ódio dos exotéricos. Como sublinha Rûmî, muitos dos hipócritas que se refugiam na forma exterior são os que, antes, “derramaram o sangue de cem verdadeiros crentes em segredo” (MIV, 2177).
A descoberta de um sentido religioso novo, que aciona alegria no coração, suscita uma dinâmica de liberdade na experiência religiosa, que se destaca do aspecto puramente exterior da religião, provocando a oposição dos segmentos mais oficiais, dos teólogos e dos juristas. Isto não significa que os místicos sufis deixassem de observar as fórmulas externas do culto, mas a intensidade de sua experiência exigia algo mais. Para eles, a observância ritual devia ser acompanhada de um correspondente “movimento do coração” – caso contrário, perderia o seu sentido mais profundo.
3. Rûmî e o Sufismo
Não há místico sufi tão conhecido no Ocidente como Djalâl-od-Din Rûmî. Na visão de Erich Fromm, Rûmî foi “um dos maiores humanistas e místicos muçulmanos”, antecipando em duzentos anos traços essenciais do humanismo renascentista, como as idéias da tolerância religiosa e da força criativa fundamental do amor9. São inúmeras as traduções de suas obras para as línguas ocidentais, sendo sobretudo seus poemas místicos apreciados e reconhecidos universalmente. Seus sucessores o reconheceram como Mevlâna (“nosso mestre”)10. Rûmî já nasce num contexto favorável à irradiação mística. A região oriental do Irã, conhecida como Khorassan, que hoje pertence ao Afeganistão, tem em sua protohistória a presença marcante de tradições religiosas diversificadas, como o Budismo, o Zoroastrismo, o Hinduísmo e o Cristianismo nestoriano. Os especialistas reconhecem que o Islã afegão foi plasmado pela mística e pela abertura à diversidade11.
Rûmî nasceu no ano de 1207 na província de Balkh, berço da civilização persa. De seu pai, Baha´uddin Walad, um conhecido teólogo e mestre espiritual, herdou o interesse pelas questões teológicas e místicas. Em razão do temor da ameça mongol, das hordas de Gengis Khan, a família de Rûmî partiu, entre os anos 1215 e 1228, para uma série de viagens, começando pela peregrinação a Meca e Medina e fixando-se temporariamente em Aleppo, na Síria ou Damasco. Em 1228 chegaram à Anatólia Central, radicando-se finalmente em Konya. No tempo de Rûmî, Kônia era refúgio de inúmeros literatos, artistas e místicos do mundo islâmico oriental. Era conhecida não apenas por sua grande beleza, mas pela admirável tolerância reinante. Tratava-se de um dos raros lugares seguros e protegidos contra a devastação mongol.
Do primeiro casamento, com Gevher Hatun, ocorrido quando tinha 18 anos, Rûmî teve seu primeiro filho, Sultâm Walad, nascido em 1226. Ele será um dos seus importantes biógrafos12. Alguns anos após a morte de sua primeira esposa, Rûmî contraiu matrimônio com Kirâ Khâtûn, de família cristã, com a qual terá mais dois filhos. Após a morte de seu pai, ocorrida em 1231, Rûmî passou a conviver com Burhanud-Din Mahaqiq, antigo discípulo de Walad, com o qual passou a aprender durante uma década os mistérios do conhecimento místico. Após a partida de seu mestre, Rûmî “já havia alcançado o respeito e a admiração dos buscadores espirituais da rica capital dos Seljúcidas. Aos 37 anos, Rûmî já se tornara mestre, versado em filosofia, poesia clássica, teologia, jurisprudência e moral. Possuidor de uma reputação consolidada, centenas de discípulos seguiam-no. Enfim, Rûmî tornara-se o legítimo herdeiro espiritual de seu pai”13. Em busca de aprofundamento espiritual, esteve na Síria por uma ou duas vezes, onde provavelmente tomou contato com Ibn ´Arabi.
O decisivo acontecimento espiritual em sua vida foi, porém, o encontro com o velho nativo Shams ud-Din de Tabriz, no ano de 1244. O encontro de Rûmî com o dervixe errante, que tinha cerca de 60 anos, provocou a grande transformação em sua vida. Há inúmeras versões sobre o encontro destes “dois oceanos espirituais”, e todas elas indicam a experiência de estupefação mútua que fez brotar uma das mais espetaculares e ricas histórias de união mística. Segundo José Jorge de Carvalho, esta profunda união entre dois indivíduos é singular e única, “algo extremamente raro, em que duas pessoas conseguiram penetrar as esferas recôndidas da realidade extra-sensorial e extra-racional, e ver juntos a mesma dimensão, o mesmo espaço, a mesma fração da verdade absoluta”14. Da inspiração desse encontro nasceu uma das obras mais vastas e impressionantes de poesia mística, as famosas odes místicas de Rûmî, o Divan de Shams de Tabriz, inteiramente consagrado à experiência do amor, que, para além de sua manifestação terrestre, expressa a hipostase do amor divino.
Na construção de sua vasta obra em poesia e prosa, Rûmî sofreu uma gama variada de influências, das quais o grande referencial permanece sendo o Corão e a tradição do profeta Mohammed (Maomé). Os biógrafos do místico assinalam também o influxo de outros místicos sufis importantes como Bistami, Dhu´n-Nun, Ibn ´Arabi e al-Hallaj. Ao lado da tradição islâmica pode-se ainda assinalar influências neo-platônicas e da tradição gregacristã capadócia. A principal obra de Rûmî, o Masnavi, constitui uma feliz conjunção de poesia mística e tratado teológico-filosófico. Esta monumental obra, também denominada “Corão em lingua persa”, está divivida em seis livros, contendo cinquenta e um mil versos (25.630 dísticos)15. O seu tesouro principal, como lembra Mevlana, é o despojamento e a unidade (MVI, 1525 e 1528). Há, também, um importante tratado em prosa, denominado Fihi-ma-fihi, que pode ser literalmente traduzido por “nisso está o que aqui está”. Neste “livro do interior”, Rûmî exerce a função de mestre espiritual, com ensinamentos precisos visando a compreensão de seu pensamento16. Quanto à obra lírica, já se mencionou suas odes místicas (Divan de Shams de Tabriz)17. Pode-se também elencar suas famosas quadras de amor, Rubâ´yât18, e suas cartas19.
4. A paixão pela unidade
Na linha da tradição mística sufi, há em Rûmî uma visceral paixão pela unidade. Esta “consciência do Uno” foi saudada por Hegel em sua enciclopédia filosófica. Ele destacou no místico a presença “da unidade da alma com o Uno”, enquanto “elevação sobre o finito e o vulgar, uma transfiguração da naturalidade e da espiritualidade, na qual o que há de extrínseco e transitório na natureza imediata, como no espírito empírico e terreno é absorvido”20. Na base da compreensão metafísica de Rûmî está a convicção na unidade da existência (wahdat-e-wudjud). Uma unidade provisoriamente rompida na dinâmica existencial da individualidade pelo golpe da separação do espírito humano de sua origem fundamental. O ser humano, como a flauta de bambu (ney), lamenta esta separação e desterro: “Desde que me separaram de minha raiz, minhas notas queixosas arrancam lágrimas de homens e mulheres” (MI: 2). Há uma nostalgia permanente do ser humano, que anseia retornar à fonte e à união com o Amado. E o que inspira o lamento da flauta, que sonha a comunhão, é o amor (MI 12-14). A nostalgia manifesta-se como amor, que não é senão uma expressão da “sede metafísica” pela unidade. Há em Rûmî um desejo imenso de Deus, uma paixão pela unidade que “passa além das fronteiras. Da razão e da loucura. Do inferno e do paraíso. Das confissões. Tamanha a sua paixão pela unidade que muitos confundiram-no – erro formidável – com um panteísta. Mas a transcendência no Divã e no Alcorão é total, muito acima da natureza, que não passa de um espelho de Deus”21. Não pode haver senão Deus sob o manto do dervixe. Deus em sua Unidade é o tesouro escondido, mais perto do humano do que sua própria veia jugular. Mais próximo do humano que o vínculo que o une à sua própria alma. Os amantes são como falenas queimadas na tocha da face do Amado (MII, 2575). Onde quer que Ele acenda sua flama, “miríades de almas amorosas são queimadas” (MII, 2574).
Para Rûmî, a única e exclusiva realidade é a unidade. A multiplicidade não passa de aparência e ilusão. Não pode haver senão unidade da existência. O véu que, para ele, separa o ser humano de sua origem é o “sentimento de ser um existente independente e abandonado no seio de uma multiplicidade que não é senão ilusória”22. Na visão de Rûmî, em verdade, não pode haver senão Ele, o Amado. As cores, enquanto símbolos da multiplicidade, constituem uma ilusão, pois a Realidade não tem cor, e para ela todas as cores retornam.
Como podes ver o vermelho, o verde e o escarlate
A menos que primeiro vejas a luz?
Quando tua vista é ofuscada por cores,
Essas cores velam de ti a luz.
Mas quando a noite vela essa cores de ti,
Percebes que só são vistas por meio da luz (MI, 1121ss).
Esta idéia foi anteriormente sistematizada na tradição islâmica por Ibn´Arabi (sec. XII d.C). Com a doutrina da wahdat al wujûd, Ibn´Arabi busca assinalar a Realidade como essência de tudo. O “Ser Absoluto” (al wujûd al-mutlaq) é, para ele, a essência de tudo o que existe. O ser de Deus é único em seu princípio e múltiplo em sua forma de manifestação. A Realidade é simultaneamente una e fonte de toda existência limitada, que é sempre existência derivada. Para Ibn´Arabi, Deus é sempre a Unidade que está por trás da multiplicidade e das aparências23.
4.O trajeto para a Unidade
Na perspectiva de Rûmî, o horizonte do ser humano está para além do “eu” e do “nós”. Sua razão de ser está na permanência do Amado (MI, 1784 e 1788). Não existe “eu” e nem “nós” no mundo da Unidade. Mesmo reconhecendo a grande diversidade das formas da criação, da variedade das almas, como acontece no mundo das letras: apesar das inúmeras diferenças que povoam o alfabeto árabe, de Alif a Ya, há, segundo Rûmî, uma unidade integral que harmoniza as diferenças (MI, 2913-2914). O que é a chama da vela em presença do sol? O místico argumenta: em essência é existente, mas em realidade é não existente, uma vez aniquilada pelo sol (MIII, 3671 e 3673). A razão de ser do humano, para Rûmî, é ser no Amado. Não há melhor visão do que a visão do Um (MIII, 2924):
O meu lugar é sempre o não lugar,
não sou do corpo, da alma, sou do Amado
O mundo é apenas Um, venci o Dois.
Sigo a cantar e a buscar sempre o Um24.
Não é simples o itinerário que leva o sujeito ao encontro do Amado. Como mostra Rûmî, o Amado está sempre disponível e presente, ao alcance de uma acolhida. O amante jamais busca o Amado sem ser antes buscado por ele. O que ocorre, porém, é que nem sempre o sujeito encontra-se preparado e disponível para abraçá-lo. Há entre ele e o Amado o elo limitador do “eu”. Para Rûmi, enquanto o ser humano não destrói o seu “eu”, não consegue ser verdadeiramente um amigo de Deus. Para ilustrar esta idéia, ele desenvolve uma singular história no Masnavi, onde relata o encontro de um homem que bate à porta de um amigo. Ao ouvir o toque da batida, o amigo interroga: “Quem és tu, ó homem fiel?”. Em resposta ele diz: “Sou eu”. O amigo o rechaça, justificando que não é dado o momento de entrar, pois não há lugar na casa para aquele que não passou pelo fogo da experiência.
Desolado, o homem parte e, durante um ano de viagens e separação, sente o calor de um coração ardente, que passou pela chama da consumação. Ao retornar para a casa do amigo, bate à sua porta, com receio, respeito e temor de que uma palavra descuidada pudesse escapar de seus lábios. Ao bater, o amigo indaga: “Quem está à minha porta?”. Ele responde: “És tu que estás à porta, ó sedutor de corações”. O amigo então disse: “Já que sou eu, que eu entre; não há lugar para dois “eus” nesta casa” (MI, 3056-3063).
Seguindo uma lógica presente na tradição islâmica, Rûmî assinala que é necessário “morrer antes de morrer” (M IV, 2271,2272 e 1372). Trata-se de condição fundamental para o renascimento do ser espiritual (M V, 551)25. Não há como se achegar ao Bem Amado, senão renunciando à própria vida. É o que diz Rûmî em diversos momentos de sua obra: “O amoroso busca ardentemene o bem amado: quando o bem amado vem, o amoroso se vai” (M III, 4620)26. A presença do Amado é como a chama do amor que, quando se eleva, consome tudo o que não é o Bem Amado (M V, 588). Nada resta senão Deus. O destino do amante é morrer para si mesmo: dele só permanece o nome (M V, 2023)27. “Diante de Deus,
não pode haver dois “Eu”. Tu dizes “Eu” e Ele diz “Eu”; ou bem tu morres diante d´Ele ou então Ele que morre diante de ti, para que toda a dualidade desapareça. Mas Ele não pode morrer nem objetivamente, nem subjetivamente. Pois, Ele é o ser vivo que não morre jamais.”28
O morrer antes de morrer corresponde para Rûmî à morte mística, que deve anteceder à morte física. Trata-se da morte do “pequeno eu”29. Este estado de aniquilação do eu e sua absorção no Amado é o ideal místico de fanâ (MI, 3054). Esta absorção no Amado faz com que a condição efêmera do ser humano transforme-se em realidade eterna, que não morre jamais. Rûmî serve-se do exemplo da fragilidade da gota d´água, sempre ameaçada pela impetuosidade do vento e da terra. Ela só se protege do risco de sua dispersão quando é lançada no mar, que é a sua fonte. No mar, ela está protegida do calor do sol, do vento e da terra. No mar, sua forma exterior desaparece, mas sua essência permanece inalterada (M IV, 2615-2618). Para que se dê o acesso ao coração purificado, que possibilita esta experiência de despojamento radical, é necessário, segundo Rûmî, captar o sentido espiritual, uma razão iluminada pela luz divina. Não há outro caminho possível para se alcançar a iluminação, a inspiração divina e a visão mística.
Segundo a compreensão de Rûmî, o acesso ao sentido espiritual ocorre quando supera-se o limite da percepção sensorial. O olho do sentido exterior é como a palma da mão que não consegue captar a totalidade, como sinalizado na história do elefante no quarto escuro. Trata-se de uma percepção limitada, pois ainda muito agarrada à “concha terrena”; ela só consegue vislumbrar a espuma que escamoteia a realidade do mar (M V, 1030-1031). O sentido espiritual escapa à percepção superficial que só enxerga as formas. As formas são tímidas e frágeis diante da realidade. Esta tensão entre as formas e a realidade percorrerá toda a reflexão de Rûmî no Masnavi, e servirá igualmente para o seu firme questionamento da escolástica muçulmana (kalam). Em sua visão não é possível um conhecimento fundado na negação da divina providência. Tal conhecimento não gera senão perplexidade. O verdadeiro conhecimento deve estar permanentemente sob o influxo de Deus (M IV, 3728-3729)30. Da mesma forma, a ciência dos exotéricos31 é vivamente questionada por Rûmî. São aqueles que estão limitados às formas exteriores e que se encontram desprovidos de espírito para penetrar na dinâmica da realidade (MI, 1016-1021). Como indica Rûmî, “aquele que olha a espuma fala do mistério, enquanto o que olha para o mar maravilha-se” (M V, 2908). Só aqueles que aprenderam a discernir as coisas do espírito, que se encontram habitados pelo conhecimento intuitivo de Deus (ma´rifa), conseguem ver para além das formas e da espuma (M VI, 1460-1461).
De acordo com a visão de Rûmî, o conhecimento de Deus não é obtido pelo intelecto ou pelo conhecimento discursivo (ilm), mas unicamente pela iluminação divina. E o órgão essencial que faculta esta acolhida é o coração (qalb). Não o órgão de carne e sangue, mas o órgão espiritual e sutil da percepção mística. Na tradição sufi, o coração é o “receptáculo cristalalino e proteico capaz de refletir todas as epifanias ou atributos de Deus: a inesgotável, infinita manifestação da Divindade na morada da união”32. Em linha de continuidade com esta tradição, Rûmî indica que “na gota de sangue do coração encontra-se o dom de uma jóia que Deus não destinou nem aos mares nem aos céus” (MI, 1017). O coração é “o lugar onde se alçam os raios da lua e a abertura das portas (da Realidade) para o místico” (MII, 165). O coração físico, purificado e iluminado pelo amor, deixa de ser um simples órgão de carne e sangue para transformar-se em órgão espiritual que percebe o invisível. Assim como o coração é a luz que confere brilho ao olhar, é a luz de Deus que confere brilho ao coração (MI, 1126-1127).
A contemplação do mistério de Deus possibilitada pela dinâmica do coração exige, antes, a purificação e dilatação deste órgão. Não há como contemplar a morada do totalmente outro quando o coração está obstruído. Só depois de purificado de toda imperfeição é que este órgão passa a refletir o conteúdo profundo do mistério divino (M I, 1394-1396). Trata-se de um processo longo e complexo, que não se realiza sem a presença de um guia (pir)33. Um passo importante para esta purificação é a busca da humildade e do desapego, o constante trabalho de retirada da ferrugem que impede ao coração refletir de forma viva o mistério que nele habita: “Sabes por que teu espelho não reflete? Porque a ferrugem não foi retirada de sua face. Fosse ele purificado de toda ferrugem e mácula, refletiria o brilho do Sol de Deus”. (MP, 19 e MI 34)
Para ilustrar esta idéia, Rûmi desenvolve a história da discussão entre os artistas bizantinos e chineses a propósito da arte da pintura (M I, 3467s). Os dois grupos de artistas discutiam diante do Sultão sobre seus pendores particulares. Os chineses, de um lado, gabavam-se de serem os melhores artistas. Por sua vez, os bizantinos diziam ser portadores da perfeição. Para decidir a disputa, o Sultão destinou dois cômodos de uma casa para serem pintados por cada um. Os dois cômodos estavam um diante do outro. Os chineses dedicaram-se com todo esforço e habilidade na arte de colorir a sua sala. Ao contrário dos chineses, os bizantinos recusaram todas as tintas, e optaram por limpar da melhor forma possível o seu cômodo, retirando dele toda a sujeira e ferrugem. As paredes tornaram-se puras e limpas como o céu. Uma vez terminado o trabalho, os dois grupos sujeitaram-se à inspeção do Sultão. A sala dos bizantinos ganhou o prêmio. Estava tão profundamente polida que ela refletiu em suas paredes todas as cores da outra sala, com uma infindável variedade de tons e matizes. Rûmî serviu-se desta história para ilustrar a importância da purificação de todos os atributos do eu que impedem captar a essência brilhante do próprio sujeito. Os bizantinos são, para Rûmî, como os sufis, que se purificam de todos os desejos. A pureza do espelho polido é como o coração que recebe inumeráveis imagens (MI, 3485). Segundo Rûmî, aqueles que poliram o seu coração escaparam dos perfumes e cores, vindo a contemplar sem cessar a Beleza a cada instante (MI, 3492). É este trabalho que, segundo Rûmî, favorece o auto-esvaziamento místico e a pobreza espiritual (MI, 3497).
Segundo Rûmî, a estação34 mais importante no caminho místico e no trajeto para a Unidade é a pobreza (faqr). Não necessariamente a pobreza de um mendicante ordinário, mas sobretudo o estado no qual o sujeito vive a experiência radical de estar absolutamente pobre diante do Criador ou, como diz o Corão, “pobre de Deus” (35,15)35. Um dos personagens que aparece no Masnavi de Rûmî, e que serve para marcar esta centralidade da pobreza, é Ayás, o favorito do célebre rei Mahmud de Ghazni. Tendo sido escolhido pelo rei, causou inveja aos outros cortesãos. Estes, no intuito de desclassificá-lo , denunciaram ao rei o estranho hábito que Ayas mantinha de retirar-se numa câmara secreta e ali trancar-se. Suspeitavam que guardasse ali moedas roubadas do tesouro, ou vinho e bebidas proibidas.
Na realidade, o que Ayás guardava no cômodo que visitava todos os dias eram seus velhos sapatos e sua roupa rasgada, que costumava usar antes das honras recebidas. Era a forma que encontrava para recordar permanentemente sua origem humilde e evitar o perigoso orgulho, seguindo a pista dada no Corão, de que o ser humano deve considerar o material de que foi criado (86,5). Com essa história Rûmî queria lembrar aos discípulos que a semente de onde procederam é a da própria sandália, do sangue e da veste de lã, sendo todo o resto um dom de Deus (MV, 2115)36.
5. A evidência de Deus
Em toda a obra de Rûmî perpassa a imagem do Deus misericordioso e omnicompassivo (Al-Rahman), de absoluta proximidade (tashbih). Deus, para os muçulmanos, se manifesta sob dois aspectos: da majestade (jalâl) e da beleza (jamâl). Há em Rûmî um acento nesta última dimensão, que pontua o dado da proximidade, do Deus como Amado. Não é possível escapar de sua misericórdia. Deus sempre acompanha o ser humano: “Pelo explendor do meio-dia, e pela noite quando serena, Teu Senhor não te abandonou nem te odeia” (Corão, 93,1-3). Este tema da Sura da Manhã é sempre lembrado por Rûmî: de Deus como um amoroso que toma a mão do arqueiro e lhe inspira o sopro criador. O Deus misericordioso acolhe estreitamente seu servidor e não o abandona um só instante (MII, 2533).
Teu amor chegou a meu coração e partiu feliz.
Depois retornou e se envolveu com o hábito do amor,
mas retirou-se novamente.
Timidamente, eu lhe disse: “Permanece dois ou três dias!”
Então veio, assentou-se junto a mim e esqueceu-se de partir37.
Deus é como o primeiro amor, que não abandona jamais o coração (MII, 2619), e sua graça transborda abundantemente e continuamente sobre o ser humano (MI, 3923). É a água que busca o sedento, antes mesmo que este vá ao seu encontro (MI, 1741). O amante nunca busca o Amado sem ser antes buscado por Ele (MIII, 4393). Na visão de Rûmî, Deus está presente no íntimo do coração: é o sempre-já-aí. O Deus transparente que é diafania mais que epifania. Mas Dele há sempre que recordar, permanentemente. Quando há no coração a presença da centelha do amor de Deus, a correspondência de amor vem imediatamente (MIII, 4396). Para Rûmî, Deus está sempre presente na invocação do fiel. A súplica do amante por Allah corresponde ao “aqui estou” (labbayka) de seu Amado (MIII, 189s). É o que está dito igualmente no Corão: “Recordai-vos de Mim, que eu me recordarei de vós” (2,152).
O importante para o amante é mostrar-se sedento: “Não busques a água; mostra apenas que estás sedento, e a água jorrará ao seu redor” (M III, 3212 e MII, 1940). Rûmî quer mostrar, aqui, a impressionante dimensão da Misericórdia universal de Deus, a mas poderosa força nutriz: “Quando à terra falta calor, o céu manda calor; quando lhe falta umidade e orvalho, o céu os envia” (MIII, 4405). O coração é o decisivo espaço da presença do Mistério. Nem a terra, nem o céu, nem o empíreo podem conter tal presença, mas sim o coração do verdadeiro crente (MI, 2654-2655).
Uma das mais belas passagens do Masnavi relata a história de Moisés e o pastor, que traduz de forma magnífica esta idéia. Certa vez, Moisés ouviu um pastor que rezava de forma espontânea: “Ó Deus, mostra-me onde estás, para que eu possa tornar-me Teu Servo, para que eu amarre Tuas sandálias e que eu penteie Teus cabelos, para que eu lave Tua roupa, mate Teus piolhos, traga Teu leite, oh meu adorado! Que eu beije Tua mão amada, que eu massageie Teu pé amado e no momento de dormir, balance Tua pequena cama. Ó Tu, a quem todas as minhas cabras são ofertadas em sacrifício; ó Tu em quem eu penso, lânguido, pleno de desejo de amor”. Ao ouvir a oração do pastor, Moisés, o profeta legalista, repreende-o severamente, identificando-o como alguém perverso e ímpio, por referir-se ao Deus juiz de forma assim tão familiar e estúpida. Para ele, o grande Deus não necessitava de um semelhante serviço. Diante de tal atitude, o pastor, envergonhado e transtornado, com a alma queimada, rasga suas roupas e retira-se para o deserto. Neste momento, veio do céu uma revelação de Deus a Moisés, que dizia: “Separaste meu servidor de Mim. Eis que viestes para reconciliar meu povo comigo, e não para afastá-lo de mim. De todas as coisas, a mais detestável a meus olhos é o divórcio. Dei a cada povo uma forma de expressão. (…) Não tenho necessidade de seus louvores, estando acima de toda necessidade. (…) Não considero as palavras que são ditas, mas o coração que as oferece, pois o coração é a essência e a palavra acidente. (…) Ó Moisés, aqueles que amam os belos ritos são de uma classe, aqueles cujos corações e almas ardem de amor são de outra. (…) Não é preciso virar-se para a Caaba quando se está nela, e mergulhadores não precisam de sapatos. (…) A religião do amor é diferente de todas as outras religiões, pois para os amantes, Deus é a fé e a religião”. Em seguida, Deus infundiu no íntimo do coração de Moisés os mistérios que palavra humana alguma alcança. As palavras invadiram seu coração, transformando radicalmente sua visão. Após compreender a reprovação de Deus, Moisés corre ao deserto em busca do pastor. Ao encontrar-se com ele, assim se expressa, movido de compaixão: “Não busque regra alguma, nem método de adoração; diga tudo o que seu coração aflito deseja. Tua blasfêmia é a verdadeira religião, e tua religião é a luz do espírito: estás salvo, e graças a ti um mundo inteiro salvou-se igualmente” (MII, 1720-1785).
Com esta bela história de Moisés e o Pastor, Rûmî quer reforçar a idéia da presença graciosa de Deus que age de forma diversificada nos corações, provocando expressões distintas e particulares de acolhimento, para além das rígidas fronteiras traçadas pelas ortodoxias muitas vezes frias e insensíveis. Nada mais importante para Rûmî do que a gratuidade do amor a Deus, um amor que é auto-finalizado; um amor que existe não em função de um temor ou de uma esperança, mas que encontra em Deus mesmo sua razão de ser (MIII, 1910-1913; 4595-4599).
6. Uma religião do amor
O amor é um dos temas mais importantes na obra de Rûmî, objeto de seus poemas mais ricos e singelos. Para ele, o amor é “o astrolábio dos mistérios de Deus”:
Por mais que se descreva ou se explique o amor,
quando nos apaixonamos envergonhamo-nos de nossas palavras.
A explicação pela língua esclarece a maioria das coisas,
Mas o amor não explicado é mais claro.
Quando a pena se apressou em escrever,
Ao chegar no tema do amor, partiu-se em duas.
Quando o discurso tocou na questão do amor,
A pena partiu-se e o papel rasgou-se.
Ao explicá-lo, a razão logo empaca, como um asno no atoleiro;
Nada senão o próprio Amor pode explicar o amor e os amantes (MI,112s).
Para Rûmî, como já visto anteriormente, o amor é expressão da nostalgia da separação original. Trata-se de uma sede metafísica que anseia pela unidade. O amor humano é etapa e ponte que traduz uma caminhada mais complexa em direção ao Amado. O amor é, para Rûmî, um “estado de alma” que conduz ao horizonte do amor divino e aponta o caminho. Daí sua convicção da importância da religião do amor como a mais sublime forma de todas as religiões. O amor é “o único lugar, o único ponto capaz de religar o eu do ser humano e o mundo da unidade, que é o mundo da divindade”38.
Na visão de Rûmî, o Amado sempre escapa ao conhecimento: ele foge continuamente do que é incerto e impermanente. Assume formas diversas e se revela onde menos se espera. Mas é sobretudo no coração que ele mostra sua presença ativa. Para Rûmî, a substância da árvore da vida e do conhecimento está para além das formas superficiais. “Ela tem milhares de nomes, mas é Uma, – corresponde a todas as suas descrições, mas é indescritível”. Ela frustra aquele que busca simplesmente nomes, pois diz respeito a qualidades. Para Mevlana, a razão do desacordo entre os seres humanos, dos conflitos que dividem os povos, está no apego radical aos nomes. Se estivessem, ao contrário, voltados para a realidade, a paz seria alcançada (MII, 3680)39.
Rûmî foi sempre considerado um dos místicos mais abertos para a dinâmica inter-religiosa. Trata-se de um verdadeiro apóstolo da abertura ao outro. A pluralidade inter-religiosa vem por ele reconhecida: “É impossível termos aqui uma única religião, exceto no dia do Juízo Final, quando todos os homens forem um único ser e se dirigirem a um único lugar”40. Mas esta diversidade existe em razão das formas que são distintas, mas o significado último é sempre o mesmo, pois Deus é único. E se o significado é sempre o mesmo, uma vez que o objeto do louvor é, na verdade, só Um, pode-se concluir que “todas as religiões são uma só religião” (MIII, 2123)41. O mistério de Deus é como o raio de luz que bate sobre um muro, ou como a lua que reflete num poço. Os seres humanos muitas vezes dedicam o seu louvor não à realidade da lua, que está no céu, mas à sua imagem refletida no poço, o que leva às discórdias, diferenças e impiedade (MIII, 3127-3132).
Na compreensão de Rûmî, a verdadeira religião distingue-se muitas vezes da religião meramente formal. Como habita no coração do crente verdadeiro, ela traduz um determinado estado da mente, marcado pela humildade e pela dinâmica compassiva. A experiência religiosa autêntica é aquela que bebeu na fonte de um mundo que está para além das palavras, que conformou um novo sentimento, traduzido numa paisagem distinta. Para Rûmî, “as palavras santas não permanecem nos corações cegos e obstinados, mas retornam à luz de onde procederam” (MII, 316). Na realidade, a verdade pode ser falsa quando não habitada pelo Amado.
Por mais que repitas expressões piedosas,
Se és um tolo, elas em nada te afetam; -
Não, nem que as coloques por escrito,
Ou as proclames com alarde;
A sabedoria afasta sua face de ti, ó homem pecador,
A sabedoria aparta-te de ti e foge! (MII, 317-320)42.
A religião do amor é aquela que vem sempre acompanhada das boas ações. Mais
importante do que as expressões da fala é a realidade de afirmação de um sentido reto. Na visão de Rûmî, as más ações constituem expressão de um coração corrompido, produzindo um hálito negativo junto às narinas de Deus (MIII, 169). Quando há pureza na experiência de louvor a Deus, a impureza se levanta e vai embora (MIII, 186). Não há, segundo Rûmî, melhor companheiro do que as obras para atravessar a existência. Nem os amigos, nem todas as riquezas e bens da terra conseguem acompanhar o ser humano para além da tumba, mas sim a excelência de suas ações (MV, 1045-1047). Deus é melhor invocado com a língua dos atos, pois a língua das palavras é frágil (MV, 1044). O amor, como indica Rûmî no Rubâi´yât, é o fiel escudeiro do ser humano nos tempos de sua avaliação derradeira:
No dia da Ressurreição, homens e mulheres comparecerão
pálidos e trêmulos de medo para o julgamento final.
Eu apresentarei o teu amor em minhas mãos e Te direi:
Interrogue-o, ele te responderá.
7. Conclusão
Não constitui tarefa simples traduzir a reflexão mística de Rûmî. Toda a sua obra vem desenvolvida com linguagem resguardada pela presença de um simbolismo complexo, de contos esotéricos e significação escondida. A linguagem esotérica, como lembra Pablo Beneíto, é uma linguagem técnica pontuada pela inspiração mística. Trata-se de uma linguagem alusiva, distinta do comentário exotérico do significado explícito. Ela “desempenha uma função fundamental e constitui um procedimento insubstituível no processo de transmissão de experiência imediata ou compreensão interna”43. Foram inúmeros anos dedicados por Rûmî à redação de sua extensa obra poética, que culmina no grandioso Masnavi. Muitos de seus poemas foram compostos em estado de grande inspiração mística, e foram ditados, cantados e recitados para os seus discípulos que os guardavam na memória para depois serem escritos. Há em alguns de seus livros, e em particular no Masnavi e no Fihi-ma-fihi, uma impressionante combinação de imaginação poética e argumentação lógica que não seguem necessariamente um fio condutor retilínio. Talvez por isso, como lembrou José Jorge de Carvalho, “a seqüência de imagens de alguns dos seus gazéis pareça, às vezes, ao leitor um tanto errática, livre, quase bizarra à primeira vista, a exigir uma segunda ou terceira leitura para que o campo das associações possa revelar sua coerência, permitindo uma melhor apreciação de sua estranha beleza. Todavia, apesar da extrema liberdade do seu processo de composição e da singularidade de muitas de suas imagens, impressiona a transparência da mensagem poética e doutrinal de Rûmî”44.
Quando se toma como referência sua obra fundamental, o Masnavi, que foi talvez o ponto de apoio mais importante na redação deste artigo, percebe-se que ele apresenta uma síntese pessoal reelaborada de quase todas as teorias místicas conhecidas no séc. XIII. Mas de uma tal complexidade que dificulta, quando não impossibilita, a edificação teórica de um sistema místico propriamente dito a partir de suas narrações e parábolas45. As noções esotéricas estão pontuadas nos dois níveis, simbólico e explicativo, presentes no Masnavi. A recorrente linguagem simbólica e alusiva serve também como instrumento para resguardar os mistérios da Realidade suprema. Um dos traços que mais impressionam na leitura de sua obra é a forma peculiar e única com a qual ele expressa a presença do fiel diante do mistério inesgotável de Deus, do fiel que, mesmo desconhecendo a chave de acesso à sua presença, coloca-se à sua sombra: “Um dia, um homem chegou diante de uma árvore. Viu folhas, ramos, frutos estranhos. A cada um perguntou o que eram essas árvores e esses frutos. Nenhum jardineiro o compreendeu, nem sabia o nome da árvore, nem lhe pôde indicar o que ela poderia ser. O homem disse a si mesmo: Se não posso compreender que árvore é essa, contudo sei que, depois que deitei meu olhar sobre ela, meu coração e minha alma se tornaram frescos e verdes. Vou então me colocar a sua sombra.”46
A presença deste mistério na vida de Rûmî é tão impressionante que só o silêncio é capaz de dar conta da lâmina de seu conteúdo. Muitos de seus poemas terminam conclamando o silêncio:
Silêncio!
E depois mais silêncio.
Não use a boca para falar.
A boca é para provar dessa doçura47
O discurso é pobre face ao explendor do mistério. Ele recua diante da luz. É como o anjo Gabriel na viagem noturna: não consegue acompanhar o trajeto do profeta Mohammad diante da força e o vigor da presença do Mistério48. Guarda-se o silêncio para ver mais claramente, para ouví-Lo falar (MIII, 1305-1307). Segundo Rûmî, “aquilo que um só olhar percebe, é impossível de manifestar pela língua ao longo dos anos” (MIII, 1994). Não há como expressar com palavras as alegrias da união com o Amado. Sobre os lábios dos santos, indica Rûmî, há um ferrolho, mas em seu coração habitam inúmeros mistérios: “seus lábios são silenciosos, embora seu coração esteja repleto de vozes” (MV,2238).
Na visão de Rûmî, a experiência interior do Amado transforma o sentimento e muda a paisagem. Toda a sua obra é um convite para captar este mundo impermeável às palavras, um convite para lavar as mãos e o rosto “nas águas deste lugar”49. É no aprendizado deste lugar que se firma a alma dos nobres, dos que buscam a pureza, dos que conseguem captar e tornar explêndidos cada som dissonante. Ao contrário dos exotéricos, “comedores de argila”, os sufis verdadeiros buscam ardentemente a essência. Para Rûmî, é a alma nobre que perdura. As palavras são acidentes efêmeros, que passam. “As preces rituais, a guerra santa, os jejuns não perdurarão, mas sim o espírito (que habita a pessoa iluminada)” (MV, 249).
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"Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto."Rubem Alves