Ela entrou,
deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio
aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres
é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é
uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo
que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas,
cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia
visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo
neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral
gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de
arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates,
os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa
espanto."
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".
Ver é muito complicado. Isso é
estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil
compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina
fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas
existe algo na visão que não pertence à física.
O zen-budismo concorda, e toda a sua
espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do
"terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é
que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos
meus olhos se abriram".
Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De
forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma
súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato,
facão_ era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em
construção".
Com eles vemos objetos, sinais
luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer.
Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos
estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam
com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o
mundo.
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças.
Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças
por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um
menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente:
"A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as
coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente
as têm na mão e olha devagar para elas".
Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana.
Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar
"olhos vagabundos"...
Rubem Alves
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"Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto."Rubem Alves