Morelliana, sempre - fonte: IMAGINÁRIO POÉTICO


Yves Klein, L'Arbre, sculpture éponge bleue, 1962.



“Aqui se fecharam olhos através dos quais o universo se contemplava com amor e em toda sua riqueza.”

Epitáfio de Johann Jakob Wagner



“Como os eleatas, como Santo Agostinho, Novalis pressentiu que o mundo de dentro é o caminho inevitável para se chegar verdadeiramente ao mundo externo e descobrir que os dois serão um só quando a alquimia dessa viagem produzir um homem novo, o grande reconciliado.



Novalis morreu sem chegar à flor azul, Nerval e Rimbaud desceram em seu tempo até as Mães e nos condenaram à terrível liberdade de pretender-nos deuses a partir de tanto barro. Por todos eles, por aquilo que às vezes abre seu caminho em nossa cotidianidade, sabemos que só do fundo de um poço podem-se ver as estrelas em pleno dia. Poço e céu não querem dizer grande coisa, mas é preciso entender, traçar as abscissas e as coordenadas; Jung dá a sua nomenclatura, qualquer poeta a sua, a antropologia sabe dos regimes noturnos e diurnos da psique e da imaginação. Quanto a mim, tenho certeza de que só circunstâncias externas (uma música, o amor, um estranhamento qualquer) me isolam por um momento da consciência vigilante, isso que aflora e assume uma forma traz consigo a certeza total, um sentimento de exaltante verdade. Suponho que os românticos reservavam para isso a palavra inspiração e que a mania não era coisa diferente.



Tudo isso não pode ser dito, mas o homem existe para insistir em dizê-lo; o poeta, em todo caso, o pintor e às vezes o louco. Essa reconciliação com o mundo do qual fomos e estamos separados por um aberrante dualismo de raiz ocidental, e que o Oriente anula em sistemas e expressões que só nos atingem de longe e deformadamente, só pode ser suspeitada mediante vagas obras, estranhos destinos alheios e, mais excepcionalmente, em sustentáculos da nossa própria busca.



Se não se pode dizer, é preciso tentar inventar suas palavras, porque na insistência vai sendo circunscrita a forma e pelos buracos vai sendo tecida a rede; como um silêncio numa música de Webern, um acorde plástico num óleo de Picasso, uma brincadeira de Marcel Duchamp, aquele momento em que Charlie Parker começa a voar Out of Nowhere, estes versos de Attâr:



Após beber os mares nos surpreende

que nossos lábios continuem secos como

as praias

e buscamos outra vez o mar para nele nos molhar, sem ver

que nossos lábios são as praias e nós, o mar.



Ali e em tantos outros vestígios de encontro estão as provas da reconciliação, ali a mão de Novalis corta a flor azul. Não estou falando de estudos, de asceses metódicas, mas sim da intencionalidade tácita que dá forma ao movimento total de um poeta, que o torna asa de si mesmo, remo de sua barca, cata-vento de seu vento, e que revalida o mundo ao preço da descida aos infernos da noite e da alma. Detesto o leitor que pagou por seu livro, o espectador que comprou sua poltrona e a partir daí aproveita o macio travesseiro do prazer hedônico ou a admiração pelo gênio. Que importância tinha para Van Gogh a tua admiração? O que ele queria era a tua cumplicidade, que tentasses olhar como ele olhava com os olhos esfolados por um fogo heraclíteo.

Quando Saint-Exupéry sentia que amar não é olhar nos olhos do outro e sim os dois juntos olharem na mesma direção, ultrapassava o amor de casal, porque todo amor vai além do casal se for amor, e eu cuspo na cara de quem vier me dizer que ama Michelangelo ou Cummings sem provar que ao menos numa hora extrema foi esse amor, foi também o outro, olhou com ele pelo seu olhar e aprendeu a olhar como ele a abertura infinita que espera e exige.”



Julio Cortázar



Vincent Van Gogh, Two Cut Sunflowers, oil on canvas, 43.2 x 61.0 cm, Paris, August-September, 1887.




CORTÁZAR, Julio. A volta ao dia em 80 mundos. Tomo II. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p.167-9.

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"Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto."Rubem Alves

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